Ficou platônico em um par de horas. Foi andar pelo jardim para deixar descer dos olhos para o coração aquele amor. Não fez questão de passá-lo logo para a cabeça, onde provavelmente morreria de lógica e frio.
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O menino tinha uns 12 anos quando descobriu o livro que mudaria sua vida. (Mau começo, parece. Tem jeito de início de romance tirado de O nome da rosa. Não é. É que aconteceu mesmo assim.) O menino era bastante recluso, não por estrita decisão sua, diga-se logo para situar bem as coisas. Ficou velho e continuou um tanto recluso. Talvez seja genética, talvez educação. Não importa. Pelo menos para essa narrativa.
Recluso, então. Solitário? Olhado a essa distância, talvez seja correto dizer que sim. Um pouco solitário. E encontrou um livro. Um de história da filosofia. História da filosofia! O menino adorava História. De filosofia já tinha ouvido falar, mas não tinha chegado perto ainda, perto de botar a mão, acariciar lombada. (O livro era antigo, encadernado, tinha lombada acariciável.) Folheou como se folheia um livro quando se está vagamente procurando alguma coisa para ler. (Mas já tinha passado mão carinhosa na lombada. Estava adivinhando.) E abriu.
O texto começava em quatrocentos e tanto a.C. Essa era então a idade da filosofia. Velha mesmo. Ainda se estava nos começos da República em Roma. O Império, mais nosso conhecido, tinha uns quatro séculos a esperar. A vinda de Cristo, sob a forma do Menino Jesus, também. O menino se deu conta de que estava lá atrás, num tempo para o qual a lida cotidiana com a contagem dos anos (desde I d.C.), os calendários (então ainda chamados “folhinhas”), os aniversários, Natais, carnavais, não o tinha preparado. Um tempo de antes. Seu gosto pela História o assanhou. Depois viu logo que o autor (chamava-se Will Durant, é preciso dar esse crédito) combinava a biografia dos filósofos com as suas ideias, e cada capítulo era um ensaio independente. Não tinha “viés científico”, não buscava “estruturas”. Contava histórias quase como se fosse um romance. Podia-se ler devagar sem perder a fio da meada. Não havia meada. O livro era claro e limpo.
O menino sentou-se no escritório do pai, numa das poltronas fundas de couro preto, em que seu corpo de doze anos sobrava. Ajeitou-se o melhor que pôde, acertou os óculos e começou a ler. Tinha uma introdução e uma nota do tradutor. Pulou. Talvez tivesse intuído que aquilo ia esfriar eruditamente o calor da descoberta. Desde então não gostava de coisas eruditas, com latim e tudo, e linguagem cheia de caroço. Nem dos especialistas meio arrogantes, que “sabiam das coisas”, mas não sabiam do mundo. Pulou e foi direto a Platão.
Raio em céu azul diz pouco. Bimbalhar de sinos. Tremor de terra. Pouco. O menino passou umas horas hipnotizado. Quatro séculos antes de Cristo e o homem já pensava aquelas coisas extraordinárias! Não era, definitivamente, um primitivo... Metia o dedo nas feridas precoces do menino. (Vamos nos lembrar, era um tanto recluso, um pouco solitário. Dizia-se então que andava com a cabeça no mundo da lua. Se Fred Vargas já tivesse criado seu comissário Adamsberg poderia estar em sua companhia escavando nuvens, ausente das coisas importantes da vida.)
Platão era grego. Logo o menino descobriria que aqueles gregos eram mesmo extraordinários. Ainda não sabia. E se apaixonou por Platão, pessoalmente, cara a cara, tu e eu. Ficou platônico em um par de horas. Foi andar pelo jardim para deixar descer dos olhos para o coração aquele amor. Não fez questão de passá-lo logo para a cabeça, onde provavelmente morreria de lógica e frio. (Essa foi uma descoberta de que não se deu conta então, não estava preparado. Mas sua vida adulta viria a ser regida por essa antecedência da paixão sobre a razão. E o menino estava apaixonado.) Andou pelo jardim como quem vagueia, não como quem vai a algum lugar. Havia uma parreira – passou por baixo sem se dar conta. (Não era tempo de uvas.) Uma caixa d´água numa parte alta do terreno – girou em torno dela sem sentido nem direção. Tinha um galinheiro – o canto do galo lhe fazia boa companhia, viria a fazer a vida inteira. Foi lá, balançou o aramado para assustar as galinhas. Desceu e subiu escadas. Tudo mais ou menos sem se dar conta do concreto desses atos simples, demasiadamente sensíveis. Não tinha entendido de verdade Platão – como poderia? –, mas naquele vagar aparentemente sem direção ia fantasiando as Ideias de galinha, galo, caixa d´água, escadas, parreira. Porque agora lhe parecia evidente que nada daquilo era de fato alguma coisa certa. A parreira universal, valendo para todas as parreiras do universo, era, segundo o Platão recém-mal-entendido, a Ideia de parreira. A Ideia de parreira seria uma parreira despida de todas as particularidades das parreiras conhecidas? Uvas verdes e uvas pretas, os troncos enrolados em pérgulas ou soltos na natureza não eram todas igualmente parreiras? E os galinheiros? Galos carijós, galos garnizés, galinhas poedeiras, galinhas d´angola, não habitavam o mesmo galinheiro, que não era aquele perto da caixa d´água, era o Galinheiro? E os galos, todos os galos, o Galo? O menino se deu conta de que podia estender essa visão ao infinito. Essa formiga... Aquela jabuticaba... A ladeira dos carros. A casa! A casa em que vivia sua família. Sua família também! E ele! Era um abismo. Não teve medo. Pulou de cabeça. Por umas vinte e quatro horas foi um platônico irremisso.
Sim, porque no dia seguinte houve Aristóteles. Que pensava o contrário de Platão. O menino não sofreu, essa contradição era problema deles, ou do autor do livro. O que fez foi se apaixonar por Aristóteles. E Aristóteles é o cara.
Platão se lê com encantamento. Inventou nada menos do que um gênero literário para ajudar os atenienses a pensarem, o diálogo. E escrevia tão bem! Aristóteles compôs tratados – sobre tudo, dos meteoros à alma, dos pequenos animais a Deus, da poesia à matemática. No século XIX Hegel, que não foi um qualquer, disse que Aristóteles tinha sido o homem mais inteligente a pisar o chão desse planeta. O menino não sabia de nada disso. Faltava muito tempo ainda para vir a dedicar toda a sua vida à procura do sentido de tudo através da história da filosofia. Mas sentiu alguma coisa. O encantamento e o devaneio que experimentara com Platão ficaram por ali, nele, na sua alma. Nada disso estava em Aristóteles. Mas foi um choque.
Ficou sabendo que esse sábio estudava e meditava de noite, com uma bola de ferro na mão e uma bacia de estanho embaixo. Quando o sono dobrava o pensamento e impunha seus direitos noturnos a mão se abria, a bola estrondava na bacia e Aristóteles retomava suas reflexões. Pode ser uma dessas lendas embelezadoras. (Melhor não olhar muito de perto...). Mas para o menino foi um sinal: já que era preciso fazer alguma coisa na vida, que fosse isso, essa dedicação completa, que nem deixa o corpo interferir no trabalho do espírito. O menino gostava, muito, do corpo. Mas era Aristóteles...
Aristóteles entrou como aluno na Academia de Platão aos 17 anos, e lá ficou até a morte do mestre. Foram 20 anos. Foi discípulo, professor e antagonista. Era o antagonismo que estava lá, no livro que o menino lia. E era, nos termos em que o autor o apresentou, bastante simples. Depois o menino, já adulto, descobriu que essa apresentação era mais ou menos discutível. Naquela hora, aos doze anos, lhe pareceu não apenas simples, mas totalmente evidente. Imagino que ele tenha lido, segundo suas possibilidades de então, um pouco redutoramente, e nesse caso ficou assim: não existe um Mundo das Ideias, todas as coisas possuem em si mesmas as qualidades que as fazem semelhantes às outras da sua espécie, e diferentes de todas as demais. Mais tarde se deu a essa inerência (palavra que Aristóteles usou) o nome de essência, que até hoje, embora em enorme desvalia, parece bastante óbvio. As galinhas têm em si, todas elas, a essência de galinha – vamos dizer, a galinhidade... Não são reflexos da Ideia de galinha, que nem uma galinha é. Tão claro. Tão evidente, na cara. Com a vantagem, nem um pouco desprezível, de botar em cena imediatamente a questão da verdade. A verdade de todas as galinhas está na apreensão racional da galinhidade. Mas a galinhidade precede a sua apreensão. O ser vem antes do conhecer. Não é óbvio? – Não é mais, nesse nosso tempo de “pós-verdade”, em que os fatos objetivos valem menos do que as crenças e opiniões. Mas disso o menino não podia saber. Ninguém podia. E o que aconteceu foi que resolveu, certamente sem se dar conta no dia em que se apaixonava por Aristóteles, que dedicaria sua vida ao entendimento do que é a verdade. Vamos marcar esse dia, porque nele começou o caminho que seria povoado pelos tormentos e delícias do adulto em que o menino, pela ordem natural do tempo, se transformaria. (Mas não tão depressa. Ele mal tinha fechado o segundo capítulo.)
Seu passeio nesse dia o levou à concretíssima parreira que havia no seu jardim. Bem poderia ter pensado, se esse já fosse o seu vocabulário: “Eis uma parreira, e todas as demais, daqui ao Quirguistão, são semelhantes a ela, e por isso posso chamá-las todas de “parreira”. Esse nome é a expressão da verdade da parreira, da sua parreiridade. Ao dizer “parreira” (que é só uma palavra) estou roçando o mistério da verdade.” E teria ficado, sei que ficou, aliviado. Por maior que tenha sido na véspera sua paixão platônica, aquela coisa de Ideias era um pouco desconfortável. Separadas das coisas concretas, encasteladas em um hipotético mundo próprio, só delas, as Ideias se pareciam com Deus. Com a desvantagem de, sendo tantas as coisas “aqui embaixo”, teria de haver milhares, milhões de deuses para dar conta da diversidade do mundo. Uma ideia abissal para um menino de 12 anos, católico, com a certeza de que Deus só há um, e não está lá para ser “copiado” pelas coisas concretas, porque, afinal de contas, as criou. Aristóteles não apresentava essa dificuldade. Era mais difícil de ler, mas andava com os pés no chão, ao seu lado no jardim, curioso com a diversidade e unidade de todas as coisas. – O menino não sabia, mas tinha recebido um imprinting aristotélico. Não se livraria mais dele. Nem lhe passaria pela cabeça querer se livrar.
O resto do livro transcorreu sem grandes sobressaltos. Houve uma breve paixão por Spinoza, cuja noção de Deus-Natureza perturbou por uns dias o sono do menino. Mas passou. Quem não passou foi Aristóteles. A tal ponto que se tornou natural, como uma pele. A pele do menino foi se esticando, ficando adulta, Aristóteles foi crescendo. Mas o menino, agora adulto, professor de filosofia, essas coisas sérias todas, já não se dava conta. É natural que as peles cresçam junto com as carnes e os ossos. E que nem demos por isso. E o tempo passou, o adulto que fora o menino deu aulas por mais de 50 anos, escreveu muitos livros, e, de novo porque o tempo tem dessas inflexibilidades, envelheceu. E agora viu de súbito Aristóteles emergir. É natural que só vejamos as fundações de um edifício quando ele desaba e as põe a nu. E aí não adianta mais: o edifício, em ruínas, deixou de ser habitável. É o que dizem ao velho: essa longa história acabou, a realidade concreta do mundo se esfumaçou nos virtuais e algoritmos, a verdade naufragou nas narrativas e versões, na inteligência artificial, nas crenças polarizadoras. Fim da possibilidade de diálogo, para onde foi Platão? Estamos no reino da pós-verdade. Adapte-se. Se não puder, cale-se. Sua busca acabou num beco sem fundo, e ninguém se importa. Ele se lembra de versos tristes de Chico Buarque, da canção O velho:
Me diga agora o que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo pra deixar
Nada, só a caminhada longa
Pra nenhum lugar
Pensa também em Manuel Bandeira:
A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa...
- Mas o menino ainda existe
É verdade. Esteja onde estiver, o menino ainda existe. Essa história não acabou.